Agrotóxicos, venenos ou remédios?

Por Ailton Terezo

O debate em torno dos agrotóxicos é um dos mais sensíveis e complexos, como o próprio título deste artigo sugere. Talvez o tema adquira essa magnitude devido às excessivas manifestações políticas, que, em alguns casos, chegam ao viés ideológico, revestindo-se de conhecimentos científicos que ainda não demonstram, de forma indubitável, a correlação de causa e efeito, especialmente nos trópicos. Por conta dessa complexidade, manifestar uma opinião que contemple aspectos científicos, políticos, econômicos e ambientais de maneira integrada é praticamente impossível. Ainda assim, arrisco-me a uma reflexão sobre este incêndio que há muito tempo queima em nosso estado.

Primeiramente, acredito que, se queremos interferir e propor soluções neste tema vital para Mato Grosso e o Brasil, devemos nos apoiar na ciência e em fatos bem comprovados. Nenhum ator público deve tomar decisões baseadas em dados que não sejam (re)produzidos, (re)validados e fortemente (re)comprovados no ambiente em que se estuda e aplica, seguindo metodologias de estudos primários e secundários. Dessa forma, aponto a principal reflexão deste artigo: devemos proibir o uso do herbicida glifosato no estado de Mato Grosso, baseando-nos principalmente em dados e fatos provenientes dos Estados Unidos e da Europa? A ciência deve ser a base para tal decisão. Ela é universal e a detentora do saber.

Imagine, leitor, uma conversa entre um médico e um químico sobre o que muitos chamam de pesticidas (o sufixo “cida” vem do latim caedere e significa “matar”), e que o químico conhece como agroquímicos, ou seja, produtos químicos usados na agricultura. Em sua defesa acalorada, o médico sustenta que as substâncias presentes nesses produtos são tóxicas, contaminam rios, peixes, alimentos e seres humanos, sendo “demônios” que causam câncer. Portanto, ele defende que os pesticidas devem ser banidos da face da Terra. Ao final da discussão, para relaxar, eles acendem um cigarro. Existe contradição maior do que essa?

Infelizmente, é fato que muitas substâncias químicas tóxicas e cancerígenas estão presentes em nosso dia a dia. No cigarro, por exemplo, estima-se que existam mais de 4.700 substâncias tóxicas, sendo pelo menos 70 delas cancerígenas. Não existe produto de consumo com um potencial químico tão prejudicial. Em função desses malefícios, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) obriga os fabricantes a exibirem imagens fortes e mensagens de advertência nos rótulos de cigarros e outros produtos de tabaco, como algumas aqui reproduzidas.

Outra situação cotidiana é vista ao abastecer um veículo automotor. Observe a bomba de combustível, e verá um aviso obrigatório que diz: “A GASOLINA CONTÉM BENZENO, SUBSTÂNCIA CANCERÍGENA. RISCO À SAÚDE.” Em função da exposição ocupacional ao benzeno em postos de combustíveis, o Ministério do Trabalho obriga a afixação do aviso.

O cigarro e a gasolina podem ser considerados modelos universais. Ou seja, a gasolina ou o cigarro em Sorriso, no norte de Mato Grosso, terão o mesmo efeito que nos Estados Unidos, na França ou na China. Por outro lado, com os agroquímicos, não é assim. Sua dinâmica é fortemente afetada pelo clima, condições meteorológicas, solo, interações químicas com outras substâncias, formas e doses de aplicação, entre outras variáveis.

Falando em doses de aplicação, na ciência existe uma frase que se tornou praticamente um enunciado: “A diferença entre remédio e veneno é a dose”. Embora pareça um ditado popular, esta é a regra na maioria dos estudos de moléculas químicas ou bioquímicas usadas para controle da vida na Terra. Nos cinco reinos do mundo vivo, as substâncias químicas são imprescindíveis, sendo a origem e o fim de toda matéria. Contudo, seu efeito de remédio ou veneno depende do objetivo: produzir ou destruir membros desses reinos. Por exemplo, se queremos garantir alimentos suficientes para a manutenção de espécies do reino Animalia (humanos, animais, entre outros), empregam-se moléculas (químicas ou bioquímicas) que ajudam a preservar e cultivar outras espécies. Encontrar um equilíbrio nesse processo é um enorme desafio. Devemos buscá-lo incansavelmente para garantir a sustentabilidade da vida no planeta.

No que se refere aos benefícios e malefícios dos agroquímicos na produção de alimentos, essa busca só terá sucesso se houver colaborações duradouras para produzir dados robustos e sólidos conhecimentos sobre o uso desses produtos e suas consequências para o meio ambiente, considerando as diferentes características locais e suas interconexões.

Um exemplo de estudo no nosso estado é a identificação da presença de agrotóxicos no leite de lactantes residentes no município de Lucas do Rio Verde, em 2011. Oito anos depois, o que foi feito cientificamente para demonstrar uma relação de causa e efeito? Foram detectadas novas contaminações? A contaminação é recorrente? Ela difere significativamente quando se usam diferentes formas de pulverização? As moléculas contaminantes se acumularam nas lactantes? Quais os efeitos na saúde delas? As crianças desenvolveram alguma doença diretamente relacionada ao leite contaminado? Sobram mais perguntas do que respostas. Assim é a produção de conhecimento pela humanidade. Ao encontrarmos uma evidência para uma hipótese, é comum (e desejável) que se abram novos questionamentos, o que nos move para um futuro melhor.

Embora esteja distante da minha formação acadêmica, como cidadão, é preciso reconhecer algumas atuações políticas que interferem na correta avaliação dos cenários. Recentemente, os dados sobre o uso per capita de agrotóxicos no Brasil foram amplamente divulgados, destacando Mato Grosso como o primeiro no ranking. Este é um exemplo de uso político de dados técnicos, que não leva em conta o fato de sermos um estado com baixa densidade demográfica, ocupando a 25ª posição no ranking do Brasil, com apenas 3,36 habitantes/km², ao mesmo tempo que Mato Grosso é a locomotiva do agronegócio do país.

Lembro, ainda, que um embate político recente resultou na manutenção da cobrança de impostos sobre a comercialização de remédios, enquanto os agrotóxicos foram isentos, amplamente discutido na tramitação e aprovação do PLC 53/2019, enviado pelo poder executivo à Assembleia Legislativa de Mato Grosso. Não seria o caso de os deputados terem defendido e aprovado também a isenção dos impostos sobre os remédios? Outro momento político foi no início deste ano, quando se aprovou o novo Fethab (Fundo Estadual de Transporte e Habitação), com aumento da taxação sobre a produção agrícola.

Entretanto, nesses dois momentos políticos, o interesse não foi preservar a saúde das pessoas e evitar os riscos que a atividade agrícola oferece ao ambiente. Não se cogitou qualquer política público-privada voltada para a produção de conhecimento científico sólido e de longo prazo, que pudesse definitivamente estabelecer as relações de causa e efeito do uso e manuseio dos agrotóxicos nas regiões do Cerrado, Pantanal e Amazônia. Esses são nossos biomas; eles não estão na Europa ou nos Estados Unidos. Portanto, os resultados aqui podem ser diferentes, desprezíveis ou mais catastróficos do que no hemisfério norte. Só a ciência de qualidade poderá dar essa resposta.

No cenário atual, seguir na cruzada contra os agrotóxicos, diante da escassez de dados científicos locais e confiáveis, significa matar a galinha dos ovos de ouro de Mato Grosso. Antes de corrermos esse risco, vamos buscar uma resposta definitiva, definir processos seguros de uso e manuseio, e desenvolver novas alternativas tecnológicas. Precisamos apenas tomar a decisão, ter ousadia e conectar pessoas, formando uma força-tarefa contra a falta de conhecimento sobre um tema tão importante para o meio ambiente, a saúde das pessoas e o financiamento do estado. Independentemente do que se encontrar, é necessário que façamos isso aqui, com a união dos poderes públicos, do setor produtivo e da academia mato-grossense. Basta uma definição e, principalmente, que os poderes executivo, legislativo e judiciário assumam a responsabilidade e destinem uma fração dos seus orçamentos e duodécimos, enquanto o setor produtivo reverte uma pequena parte de seus lucros. Juntos, temos competência para esse desafio.

Nesta semana, a Assembleia Legislativa deve começar a votar o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO/580-2019) para o exercício de 2020. Será que este assunto estará em pauta?

Depois de tudo, se os agentes públicos ainda assim desejarem banir algo, sugiro que comecemos pelo cigarro e pela gasolina.

Ah! Já imagino que os ideólogos de plantão vão justificar que cigarro e gasolina não são alimentos. Então, encerro esta reflexão lembrando que a ciência já comprovou que a contaminação não ocorre apenas por ingestão, mas também por inalação e contato.

Professor Ailton J. Terezo, Doutor em Química de Materiais – UFMT

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